Não tenho dúvidas de que 2020 foi o ano do “Torto arado”. Vencedor de dois prêmios literários de extrema relevância (Prêmio Jabuti e Oceanos), o livro de Itamar também conquistou o gosto do público leitor. E com tanta crítica positiva sobre o livro, fica até difícil fazer comentários, seja pelo risco de ser repetitivo, seja pelo medo de fazer algum comentário que possa ir contra a opinião do público.
Por meio da voz das irmãs Bibiana e Belonísia, o autor constrói de forma sensível e humana a herança de um passado escravagista que perdura no território brasileiro, mais especificamente no sertão baiano. E quando a gente fala em dar “voz” às personagens, Itamar dá voz aos silenciados. Talvez seja esse o significado por trás da marcante cena que inaugura a narrativa e que vai perseguir os moradores de Água Negra: a mutilação de quem desde criança já está condenado à submissão social. É a mutilação pela memória.
Ao redor de Bibiana e Belonísia, outras vidas são apresentadas ao leitor. Histórias muito bem entrelaçadas por Itamar e que deixam clara a dureza da vida no sertão nordestino. Vive-se com muito pouco, porque não se pode ter mais. Deve-se obedecer para poder seguir vivo e manter viva a família. Se de um lado há poucos que se aproveitam dessa situações, são tantos aqueles que sofrem para sustentá-la. Todo esse cenário é acompanhado não só pelo leitor, mas também por Santa Rita Pescadeira, uma entidade que já há muito tempo compartilha o sofrimento desse povo cheio de fé.
Uma leitura fluida, mas que merece o seu próprio tempo para capturar tamanha densidade em poucas páginas. É refletir sobre a denúncia de uma sociedade que ainda é profundamente marcada pelo seu passado em que a escravidão era tolerada. Se depois de tanto tempo uma lei veio para proibir, será que a realidade realmente obedeceu a letra que mancha o papel?